Sobre mim

"Todavia, em dado momento o meu olhar se exalçou e, assim, consegui vislumbrar algo melhor a que qualquer provinciano pode aspirar."
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Do Campo Para a Vastidão da Vida

O campo, a zona rural – digo mesmo a roça, com suas limitações e a pobreza dos pequenos ruralistas, anônimos sobreviventes no chão inóspito dos sertões ressequidos – pode ser uma porta que se abre para um mundo maior e cheio de oportunidades.

Tal há sido a experiência de figuras notáveis que, de meninos acanhados, alçaram voos gigantescos e se tornaram exemplos magnos para a humanidade. São contados entre os grandes homens da sociedade, que se destacaram em variados campos do saber e na expressão do ser por que se votaram.

Os heróis não costumam desprender-se de todo do seu passado resignado, de lutas honestas, de conduta decente e reações afirmativas.

Pr. Válter Sales

Os heróis não costumam desprender-se de todo do seu passado resignado, de lutas honestas, de conduta decente e reações afirmativas. Porém, se não ousam sair da passividade, tornam-se vassalos incautos da esperteza e do oportunismo de ocasião.

Não me incluo entre o reacionários bem-sucedidos. Certo é que vim de um ambiente humilde, da roça mais desprovida, de onde não se poderia sonhar alto, nem mesmo se conhecia a palavra perspectiva. Todavia, em dado momento o meu olhar se exalçou e, assim, consegui vislumbrar algo melhor a que qualquer provinciano pode aspirar. O sertanejo é austero a qualquer custo. E eu ousei sê-lo.

O programa de estudos oferecido na escola da roça consistia em apenas um “bê a bá” repetido, enfadonho, de escola rural sem material, sem professor e sem estrutura. Mal daria para alfabetizar. Não guardo desse tempo qualquer lembrança de aprendizado, mas tenho inapagável memória das labutas com a enxada, num pedaço de chão carrancudo. Enxada pesada nas mãos de um menino raquítico. Aos oito ou nove anos de idade, eu tinha certo orgulho de minhas mãos calejadas e recebia elogios dos adultos, de “menino trabalhador”. Era a glória! A colheira do algodão, quase sempre murcho, dava-me uns míseros centavos que eram gastos nas feiras públicas dominicais do distrito mais próximo.

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A rudeza do campo levava meu pai a rumar para a cidade a fim de conseguir algum trabalho em sua profissão de pedreiro, mas a lembrança do campo trazia-o de volta, sempre que escasseava a mão de obra, e na esperança de que do céu caísse a chuva e do chão brotassem o milho, o feijão, o algodão, alguma fruta ou legume, sem que se fizesse distinção entre um e outro. Assim, muitas vezes nos deslocávamos da zona rural de Sertânia para a capital do Estado. De trem, indo e voltando muitas vezes, na tentativa de subsistir. Tempos reticentes foram aqueles, de renitência peregrina, semelhante à do resignado e resistente Fabiano, do clássico Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Idênticas referências assinalavam nossa vida de retirantes. Hoje são como nuvens passantes na memória de tudo que aconteceu e de que não tínhamos sensibilidade e consciência. Apenas íamos.

Por fim, a permanência no Recife, mas só por algum tempo… A vocação peregrina de meu pai não se rendia a quaisquer outras opções de trabalho ou a qualquer argumento. Esse vai e vem consumiu-nos cerca de oito anos, que seriam de estudos programados dos filhos, particularmente do mais velho. Guardo a lembrança de um velho professor, José Paschoal de Figueiredo. Viu ele que o menino tinha futuro e implorou a seu pai para que o deixasse sob sua guarda e orientação. Acresceu que já havia escolhido um bom colégio onde o matricularia. Era o Professor Paschoal um mestre-escola, desses cuja vocação projeta-se com grandeza de espírito na vida de seus alunos, mormente os mais promissores.

– Não. Para onde eu for meus filhos vão comigo. Foi a resposta. E assim sucedeu durante quase uma década.

Por fim, veio, em 1959, a desilusão definitiva: da roça para Sertânia e, seis meses depois, de Sertânia para a cidade de Paulo Afonso, na Bahia, onde a promissora Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) se instalava e atraía dos quatro cantos do país milhares de trabalhadores e profissionais de diversas áreas. Meu pai lá antes estivera, trabalhando na construção do Quartel da Companhia de Infantaria do Exército.

Filho de operário, dificilmente eu conseguiria ingresso num dos colégios da grande empresa, que arrancava das cataratas da Cachoeira de Paulo Afonso a força energética que redimiria o Nordeste. A esse tempo, eu já estava com 13 ou 14 anos de idade, e não tinha sequer concluído o primeiro grau (antigo curso primário, hoje, ensino fundamental I – educação básica para crianças de 6 a 10 anos).

A vida, contudo, é pródiga em criatividade e na geração de oportunidades. O ideal do Pastor Onésimo Pereira do Nascimento, da Primeira Igreja Batista de Paulo Afonso, somado ao denodo de outros líderes religiosos, levou-o a criar o Centro Evangélico de Recuperação Social de Paulo Afonso. Nasceu desse projeto o Colégio Sete de Setembro – o curso primário, depois o ginásio, o segundo grau e, hoje, lá está plantado um complexo universitário. Foi a minha chance e de meus oito irmãos. Sentindo-me deslocado, recusei-me a ficar numa sala com crianças e me submeti a uma seleção para o antigo Curso de Admissão ao Ginásio, com duração de um ano. Aprovado, fiz todo o curso ginasial, sendo orador da turma.

Sonhava eu, a esse tempo, tornar-me advogado. Mas não havia o Curso Clássico na cidade, o mais indicado para essa aspiração. Sujeitei-me a fazer o primeiro ano de técnico em contabilidade, coisa a que jamais aspirei. Já chesfiano, pedi transferência para o Recife, sonhando com a famosa Faculdade de Direito por onde passaram Rui Barbosa, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Tobias Barreto e outros gigantes da cultura jurídica e literária.

Sem alternativas de emprego, servi no comércio paulafonsino, em atividades modestas, ou em feira pública, como freteiro. Eu e, depois, meus irmãos. Era-nos imperioso para abastecer as despensas da nossa casa e pagar as contas. Também fui carteiro e mensageiro, não oficializado, sem as prerrogativas do mensageiro dos deuses gregos, Hermes. Era tudo muito passageiro e provisório.

Na Chesf entrei como operário (braçal) para aproveitar a oportunidade. Não me deixaram no pátio do almoxarifado, a carregar e descarregar carretas, sob um sol inclemente de 40 graus. Fui para o escritório tomar conta de mais de 50 mil fichas com nomenclaturas de material para a demanda da grande empresa. Por merecimento, promovido a auxiliar de escritório. Algum tempo depois, por concurso, escriturário. Já funcionário graduado, fui transferido para o Recife. Novo concurso interno e promoção a auxiliar administrativo I, II, um grau apenas abaixo do nível superior do quadro geral da empresa.

Estudos no Recife. Segundo ano clássico; para ganhar tempo, inscrevi-me na Secretaria de Educação do Estado, para exames supletivos. Oito matérias, nas quais fui aprovado. Agora, a Universidade. Não. Agora, uma guinada. Ao obter a transferência, eclodiu-se-me uma vocação dos tempos de adolescência. Vocação religiosa. No dilema entre o Seminário Batista e a Faculdade de Direito, prevaleceu a vocação religiosa. Então veio a Teologia, com graduação e mestrado – dissertação sobre o tema Culpa a Graça no Contexto da Igreja. Nessa instituição, a cátedra, desafio e realização. Novamente aflorou a saudade da sala de aula, como aluno. Então, a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), com uma licenciatura em Filosofia e, pouco tempo depois, uma Pós em Literatura Brasileira, na Faculdade de Filosofia do Recife (Fafire, hoje Unifafire). O estudante se houve bem em todos esses cursos, sendo orador de turma no Seminário e logrando nota máxima em seu trabalho de conclusão em literatura na Fafire, versando sobre Literatura e Negritude – uma análise literofilosófica do preconceito racial em Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Os trabalhos de conclusão de curso, no Seminário (hoje Faculdade) e na Unifafire estão nas bibliotecas das respectivas instituições.

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Quem sou afinal? Um cidadão comum, casado, uma convivência de 52 anos, três filhos, seis netos. Ministério pastoral em Igrejas Batistas em Limoeiro/PE, Recife/PE, Feira de Santana/Bahia, Belo Horizonte/MG e, finalmente, Recife. Atividades docentes: Seminário Teológico Batista em Belo Horizonte; Seminário Teológico Batista do Recife; Seminário de Educação Cristã, Recife; Escola Superior de Marketing/Recife; Seminário Teológico Episcopal e Seminário Cristão Episcopal do Brasil, ambos na cidade do Recife.

Hoje, um homem centrado em leituras (convivência agradável e pacífica com os clássicos), aulas e produção de textos. Desta transpiração, por enquanto, apenas um exercício catártico; pastas e volumes encadernados. Por escolha pessoal, para deleite do intelecto, que não seja mero diletantismo, mas alguma sutil prospecção. Hoje, lembrança de um passado de lutas, de sonhos, de alguns desapontamentos… Nada, contudo, que lhe houvesse debelado o otimismo, o sentimento e a percepção de que a vida passa, mas passa sempre para um momento melhor. Um clérigo aposentado, que não enriqueceu em seu múnus sacerdotal e por isso precisa trabalhar como professor para subsistir. Sobretudo, um homem que se sente honrado pelo que fez e faz, e pelo que foi em todo o curso de sua vida.

Hoje, um homem que vê e interpreta a vida com uma cabeça de 78 anos. Que não se encanta com os criativos e indisfarçáveis conchavos da política atual, a não ser a dos grandes mestres gregos e de seus honrados sucessores através dos tempos; uma política inventiva e astuta, pobre de conteúdo e rica em subterfúgios. Sou um homem que deplora a esperteza dos corifeus e o oportunismo dos maus gestores; que facilmente se aborrece com a parolagem das religiões midiáticas; que se desencanta com os maus oradores, do púlpito, inclusive (lídimos herdeiros modernos do sofista Górgias, hoje, o niilista), e com os pretensos formadores de opinião; com a mercantilização do ensino, com a depravação dos meios de comunicação, com a exploração da cidadania, o desprezo para com a infância, com a negação das liberdades individuais, com a mercantilização da fé, com a banalização da família.

Hoje, um homem que aprecia os gênios da literatura e se deleita na Lei do Eterno, naquilo em que Ele se revelou por meio de sua Palavra, na Graça e na Esperança que temos sempre, e sempre teremos em Jesus de Nazaré.

Um homem de fé, portanto.

Na pessoa excelsa de Jesus temos e vemos o centro de todas as aspirações, temporais e eternas. Ele é o centro, a convergência de toda a mensagem revelada e proclamada.

A Hora Sexta é o centro – o meio-dia – mais que situada em Sicar, porém, essencial para a vida. Se olharmos para o alvorecer do dia ou para o seu crepúsculo, encontraremos razão para estar com Ele, em duradoura e salutar companhia.

Como Pedro, havemos de indagar: “Para quem iremos…?” Já por indicação pronominal, por muito que sejamos otimistas, não nos restará alternativa.

A Hora Sexta é indicação da viabilidade máxima.

Recife, 14.08.2025
Válter Sales